Abuso do poder político e o rigor de sua punição pela Justiça Eleitoral do Brasil: efetividade da norma constitucional de tutela da legitimidade das eleições

Por: Dieison Picin Soares Bernardi

É sensível a evolução jurídica do tema da apuração e punição de condutas de abuso do poder político (art. 14, §9º, da Constituição da República/1988), processadas e julgadas pela Justiça Eleitoral no Brasil, ramo especializado do Poder Judiciário brasileiro (Constituição Federal, arts. 118 a 121, na Seção VI - “Dos Tribunais e Juizes Eleitorais”).

Ao lado de condutas que caracterizam, a dizer, abuso do poder econômico, abuso dos meios de comunicação, entre outros ilícitos eleitorais, o abuso de poder político (sobre o abuso do poder político no Brasil: conf. GARCIA, 2006) é reconhecido no âmbito da Justiça Eleitoral como abuso de autoridade, ou abuso no exercício de função, cargo ou emprego na administração pública direta ou indireta, praticado em infração às leis eleitorais brasileiras, a beneficiar abusivamente candidatos a cargos eletivos, muitas vezes candidatos à reeleição.

Certo que “abuso do poder político é o uso indevido de cargo ou função pública, com a finalidade de obter votos para determinado candidato (…). É a atividade ímproba do administrador, com a finalidade de influenciar no pleito eleitoral de modo ilícito, desequilibrando a disputa. Sem improbidade, não há abuso de poder político” (SOARES DA COSTA, 2002).

No Brasil, as condutas de abuso do poder político vem sendo punidas, segundo meios processuais (ação eleitoral específica) e à luz de determinados requisitos específicos que vêm mudando e se aperfeiçoando, não apenas conforme previsão legal, mas também, em conformidade com a evolução histórica da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral.

Inicialmente, o Código Eleitoral, instituído pela Lei n. 4.737, de 15 de julho de 1965, apenas previa, em seu art. 237, que “o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto, serão coibidos e punidos”, sendo o “eleitor”, parte legítima para denunciar e promover-lhes a responsabilidade e, se “verificada a seriedade da denúncia”, o órgão judiciário eleitoral competente mandaria proceder “investigações, regendo-se estas, no que lhes for aplicável, pela Lei n. 1.579, de 18.3.1952” (a Lei n. 1.579/1952 dispunha sobre as “comissões parlamentares de inquérito”).

A Constituição de 1988, com o fito de "proteger a normalidade e legitimidade das eleições", autorizou a criação, por lei complementar, de duas espécies de inelegibilidades: uma para evitar a influência do poder econômico, e a outra em consequência do “abuso do exercício de função, cargo ou emprego público na administração direta ou indireta” (§ 3º do art. 14). [...] O Abuso do poder político é quando quem detém a titularidade do poder usa de sua autoridade para influenciar no processo eleitoral, inclusive para promoção pessoal infringente do art. 37, § 1º, da CF” (NASCIMENTO, 1996).

A dizer, no Brasil, no campo da legislação eleitoral (sobre a evolução histórica da legislação eleitoral entre 1821 a 1965: conf. LOPES, 1976), a  Complementar  n. 64, em seu texto original, no ano de 1990, estabeleceu procedimento próprio, no âmbito cível eleitoral, para apuração e punição por abuso de autoridade.

A Lei n. 9.504, Lei das Eleições, em 1997, tipificou “condutas vedadas aos agentes públicos em campanhas eleitorais”, impondo sanções. Entende-se, pois, que “após aprovada a emenda constitucional da reeleição, o legislador brasileiro passou a tipificar determinadas condutas tidas por ilícitas ou abusivas e, ipso facto, vedadas a sua prática por certos agentes públicos. Podem, conforme o caso, caracterizar abuso do poder político. São atos que, uma vez praticados, podem afetar a isonomia de oportunidades entre os candidatos em determinado prélio eleitoral” (ALMEIDA, 2011).

Ulteriormente, a Lei Complementar n. 135/2010 (Lei da Ficha Limpa), que alterou a LC n. 64/1990, também acrescentou rigor na punição por abuso de poder político, estabelecendo, em seu art. 22, XIV, no âmbito da AIJE, ação cível-eleitoral, que “julgada procedente a representação ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou do diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar”.

Em jurisprudência, de outra parte, com ênfase, a matéria evoluiu de maneira brilhante, mormente, a partir do ano de 2002.

No âmbito do colendo Tribunal Superior Eleitoral:

“Segundo a jurisprudência desta Corte, alterada desde o julgamento do REspe n. 19.571/AC, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 16.8.2002, na ação de investigação judicial eleitoral, deixou de se exigir que fosse demonstrado o nexo de causalidade entre o abuso praticado e o resultado do pleito, bastando para a procedência da ação a "indispensável demonstração - posto que indiciária - da provável influência do ilícito no resultado eleitoral” (TSE. Recurso Ordinário n. 758 - Rio Branco/AC. Acórdão nº 758 de 12.8.2004. Relator Min. Francisco Peçanha Martins. Publicação:  DJ  3.9.2004, p. 108).

Ainda:

"O nexo de causalidade quanto à influência das condutas no pleito eleitoral é tão somente indiciário, sendo desnecessário demonstrar, de plano, que os atos praticados foram determinantes do resultado da competição; basta ressair, dos autos, a probabilidade de que os fatos se revestiram de desproporcionalidade de meios" (Ac. nº 1.362/PR, rel. designado Min. Carlos Ayres Brito, DJe de 6.4.2009)” (TSE. Recurso Ordinário nº 1460 - São Bernardo do Campo/SP. Acórdão de 22.9.2009. Relator Min. Marcelo Henriques Ribeiro de Oliveira.  Publicação: DJE 15.10.2009, p. 62-63).

Em peculiar, quanto a atos de “improbidade administrativa”, no que concerne ao tema do abuso do poder político, nada obstante as discussões jurídicas em doutrina constitucional1  e, mesmo na jurisprudência do STF2 , no sentido de que as sanções por atos de “improbidade administrativa” tem forte cunho de direito penal, havendo, também,  entre os julgados da Suprema Corte, entendimento3  acerca de existência constitucional de regime jurídico único de responsabilidade para os “agentes políticos”, diferenciados dos demais “agentes públicos”, pois, no âmbito eleitoral, todavia, o colendo TSE tem entendimento consolidado (desde o ano de 2002) de que as condutas por abuso do poder político, mesmo que coincidente com “improbidade administrativa” e praticado por “agentes políticos” ou mesmo que coincidam com crimes de Responsabilidade desses agentes, desde que praticados em período eleitoral, por candidatos ou em benefício de candidaturas, a dizer, podem ser punidas como infração cível-eleitoral, dispensando a prova absoluta do nexo causal ou normativo, dispensando também a prova de existência de dolo ou culpa, elementos que muito importam para o direito penal. Basta, portanto, para imposição de condenação pela Justiça Eleitoral, que a conduta tenha “probabilidade” de causar desequilíbrio de meios na competição eletiva, devendo ser considerada a “gravidade” das circunstâncias que caracterizam o fato. Isso com base na tutela da legitimidade dos pleitos eleitorais, prevista constitucionalmente.

É decisão proferida pelo TSE no ano de 2010: “A circunstância de os fatos narrados em investigação judicial configurarem, em tese, improbidade administrativa não obsta a competência da Justiça Eleitoral para apuração dos eventuais ilícitos eleitorais.” (TSE. Agravo Regimental em Recurso Ordinário n. 2365. Porto Murtinho/MS. Acórdão de 1.12.2009. Publicação: DJE 12.2.2010, p. 20. Relator Min. Arnaldo Versiani Leite Soares).

O abuso do poder político, sem dúvida, viola o cânon da liberdade de escolher dos eleitores, bem assim contraria o princípio da igualdade entre os candidatos.

E, por esse viés, o rigor de sua punição pela Justiça Eleitoral fortalece a efetividade da norma constitucional que protege a legitimidade das eleições (CF, art. 14, § 9º).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

1 ) No Brasil, as condutas de abuso do poder político vêm sendo punidas, segundo meios processuais (ação eleitoral específica) e à luz de determinados requisitos específicos que vêm mudando e se aperfeiçoando, não apenas conforme previsão legal, mas, também, em conformidade com a evolução histórica da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral.

2 ) Em esfera do colendo Tribunal Superior Eleitoral: “Segundo a jurisprudência desta Corte, alterada desde o julgamento do REspe n. 19.571/AC, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 16.8.2002, na ação de investigação judicial eleitoral, deixou de se exigir que fosse demonstrado o nexo de causalidade entre o abuso praticado e o resultado do pleito, bastando para a procedência da ação a "indispensável demonstração - posto que indiciária - da provável influência do ilícito no resultado eleitoral” (TSE. Recurso Ordinário n. 758 - Rio Branco/AC. Acórdão n. 758 de 12.8.2004. Relator Min. Francisco Peçanha Martins. Publicação:  DJ  3.9.2004, p. 108).

3 ) No âmbito eleitoral, o colendo TSE tem entendimento consolidado (desde o ano de 2002) de que as condutas por abuso do poder político, mesmo que coincidente com “improbidade administrativa” e praticado por “agentes políticos” ou mesmo que coincidam com crimes de responsabilidade desses agentes, desde que praticados em período eleitoral, por candidatos ou em benefício de candidaturas, a dizer, podem ser punidas como infração cível-eleitoral, dispensando a prova absoluta do nexo causal ou normativo, e dispensando, também, a prova de existência de dolo ou culpa, elementos que muito importam para o Direito Penal. Basta, portanto, para imposição de condenação pela Justiça Eleitoral, que a conduta tenha “probabilidade” de causar desequilíbrio de meios na competição eletiva, devendo ser considerada a “gravidade” das circunstâncias que caracterizam o fato. Isso com base na tutela da legitimidade dos pleitos eleitorais, prevista constitucionalmente.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Roberto Moreira de. Curso de Direito Eleitoral. 5ª ed. São Paulo: Podium, 2011.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22ª ed. Editora Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 2009.
GARCIA, Emerson. Abuso do poder nas eleições: meios de coibição. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006.
GOMES, Suzana de Camargo. A justiça eleitoral e sua competência. RT: São Paulo, 1998.
NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Lineamentos de direito eleitoral: comentários e legislação. Porto Alegre: Síntese, 1996.
SOARES DA COSTA, Adriano. Instituições de direito eleitoral. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

NOTAS

1 Conferir: Gilmar Mendes e Arnoldo Wald. Improbidade Administrativa - Considerações sobre a Lei n. 8.429/1992, in RT - Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, 3ª, n. 11, p. 58, abr/jun 1995; e Ives Gandra da Silva Martins, Aspectos procedimentais do instituto jurídico do "impeachment" e conformação da figura da improbidade administrativa, in Revista dos Tribunais, v. 81, n. 685, 1992, p. 286-87.
2 Ver: STF. 2002. Decisão Monocrática. Rcl. 2138 / DF - Distrito Federal. Reclamação Relator: Min. Nelson Jobim. Julgamento: 11.9.2002. Decisão Monocrática. Publicação DJ 17.9.2002.
3 STF. 2007. Pleno. Rcl 2138 / DF. Relator: Min. Nelson Jobim Relator p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes (art. 38, IV, b, do RISTF). Julgamento: 13.6.2007. Tribunal Pleno.

Analista Judiciário do TRE/PR, lotado na 83a ZE - Santo Antonio do Sudoeste/PR. Doutorando na Pontifícia Universidade Católica Argentina - UCA.

 

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